Para refletir a sustentabilidade cabe-nos repensar conceitos,  termos e abordagens que sejam incompatíveis às práticas atuais ditas de caráter sustentável. A moda, pensada aqui enquanto um instrumento de transformação e articulação social, é um tema que repercute tais questões e reverbera por diversos eixos de discussão, que despontam para debates desde a economia circular ao protagonismo de marcas autorais com processos produtivos conscientes. 

O tema elucidado pelo Kulturforum ocorrido no Centro Cultural Brasil Alemanha (CCBA-Recife), 10 de dezembro (2024), trouxe à tona a relação (ou não) entre a Moda e Sustentabilidade partindo de pontos de vista articulados por mulheres que atuam em diversas frentes de atuação.

As discussões foram inicialmente conduzidas pelas intervenções e provocações das convidadas que compuseram a “linha de frente” dos debates. As convidadas para a noite foram a Natália Borges, Embaixadora Docente do Fashion Revolution Brasil e Embaixadora do Slow Fashion Movement; Cecília Pessôa, Doutora em Design pela UFPE, atuante nas áreas de educação, pesquisa e consultoria no âmbito da economia criativa; Maria Alice Rocha, professora doutora de ciências do consumo da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE); Jaqueline de Melo, professora da Universidade Federal  Rural de Pernambuco (UFRPE); Tatiana Leite, professora doutora de Design da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE); e a Isabella Morais, docente embaixadora do movimento Fashion Revolution.

Ademais estiveram presentes mulheres atuantes em suas comunidades na produção voltada à agricultura urbana as quais foram participantes do curso “Costura & Upcycling” desenvolvido em parceria entre o CCBA com a Urd Atelier (da estilista e costureira Natália Borges, uma das participantes do KULTURFORUM) e com a Secretaria da Mulher da Prefeitura do Recife.

O debate inicial fixou-se nas experiências e vivências relacionadas à costura das mulheres presentes e de que modo às suas percepções estavam direcionadas à questão da sustentabilidade envolvendo esse processo.

Em uma das falas iniciais, a declaração de uma das estudantes de costura, Luciane, instigou a efervescência do dilema. Nela, ela comenta: “A sustentabilidade então eu não sabia nem o que era. Ter o interesse em transformar uma roupa em algo novo, eu nunca imaginei. Não sabia nem colocar uma linha na agulha” e completa “hoje eu já fiz até uma bolsa!”. Mais adiante, Dianira, também estudante de costura, reitera sua vivência a partir do curso: “Tive a minha  primeira experiência através de nossa multiplicadora (Natália). Eu saí de lá com vontade de aprender ainda mais! E já quero o próximo curso”. 

O sentimento entre linhas e agulhas desponta para a autonomia de quem as delineia. Mulheres com mãos calejadas de terra imersas na agricultura urbana, experimentam uma sensação de concentração em seu estado mais vívido, cuja criatividade abstrata toma forma a partir de suas próprias mãos e criam um novo universo de oportunidades. O resultado é simples: a reutilização de banners na produção de bolsas. O processo, por outro lado, acompanha camadas e camadas de personalidade e dedicação de empoderamento de si mesmas.

A ministrante do curso de costura, Natália Borges, discorre que sua trajetória com a costura iniciou aos seus 16 anos, quando, em contato com instituições religiosas, pôde desenvolver suas habilidades e ganhar dinheiro a partir de seu trabalho. É com este background que a Designer comenta entender que as instituições religiosas, podem possuir um importante papel nas questões sociais pois conseguem alcançar camadas sociais que a Academia não alcança. Sua trajetória depreende-se, portanto, neste sentido. Buscar através da moda um sentido. A importância que lhe é posta, ou a responsabilidade que se compreende ao atribuir um valor social à produção, é imenso. Sem isso, no entanto, a moda recorre a sua reprodutibilidade em massa e sem critérios de produção ou um fim social, neste caso, o de contribuição para geração de rendas por meio de uma costura com menor impacto ambiental.

Neste cenário, a Profa. Jaqueline de Melo deixa expresso em sua fala a importância de entender a Moda ou as Modas, como termo utilizado por pesquisadoras de sua linha de abordagem, como um “instrumento de transformação, enquanto uma quebra de paradigmas, pensar a moda enquanto um fato social”. Para ela, um dos pontos que deve ser pensado é a ideia da “Moda-vestuário”, em que a vestimenta condiz às realidades atuais e ao contexto de tendências que governam o mercado, é um termo que “denota a questão da temporalidade associada à cultura”, finaliza.  Os brechós neste ponto parecem ser um viés que busca atenuar o impacto da produção em massa, com um ciclo de reutilização das peças a partir de preços mais acessíveis. A saber, a existência de brechós, inclusive, sendo diferenciados por status social e público. É preciso compreender a “interseccionalidade dentro da perspectiva das donas de brechós” para vislumbrar uma percepção da prática sustentável, a partir de uma peça pronta, cuja produção, apesar de não ter tido o mesmo controle, é amenizado pelas práticas conscientes sustentáveis de seu uso e de sua perdurabilidade no ciclo de vida útil da peça, até que a mesma possa ser utilizada para outro fim. 

Em contraponto adentramos para uma discussão pragmática quanto ao conceito de sustentabilidade e sua prática frente ao sistema de produção capitalista vigente em nossas relações comerciais. A Profa Maria Alice Rocha elucida uma questão interessantíssima do ponto de vista socioeconômico e das relações trabalhistas em cadeia que permeiam os processos produtivos associados ao mercado da dita Moda. Para a Profa M. Alice, Moda e Sustentabilidade seriam conceitos impossíveis de andarem juntos devido, principalmente, à sua essencialidade. A inerência de sua criação, do fazer moda, está associada a um sistema que continua a alimentar o consumo, muito embora alternativas sustentáveis emergem, ainda há o consumo dentro da cadeia produtiva. A este fato, dá-se, especialmente, a estrutura capitalista e à obsolescência programada dos objetos a necessidade básica de consumir. Segundo a professora, é necessário compreender, sobretudo, que até mesmo uma possível desaceleração do consumo pode gerar impactos econômicos. Em sua fala, ela comenta que para que haja uma ruptura deste processo, deveria-se pensar como podemos prolongar a vida útil dos objetos sem que haja uma decadência econômica de toda cadeia que vive dessa produção. Principalmente daqueles que possuem como único meio de subsistência sua força de trabalho posta nesta cadeia produtiva. A solução? Para a professora, é necessário pensarmos de forma sistemática e entender que estamos dentro dessa rede em um processo de retroalimentação, e que, por mais que iniciativas sustentáveis sejam louváveis, elas, por si sós não são suficientes para manter o sistema fundamentalmente consumista funcionando sem que a base (trabalhadores) padeça de sua, muitas das vezes, única fonte de renda.

E qual seria, diante deste impasse, a alternativa? É levantada a indagação. Uma das pontuações é justamente uma forma de adequar-se ao sistema, partindo então para iniciativas de educação para o consumo. Ou seja, que fomente uma educação baseada em práticas conscientes sistêmicas de consumo.

A relação consumo e meio ambiente, apesar de perturbadora, é uma realidade fundamentada em discursos. A noite acalorada de ideias, provocações e ânimo deixou impregnado em seus participantes a sensação de que tais debates são necessários inclusive para a manutenção do fazer consciente de suas práticas. Compreender, sobretudo, que as ações não se sustentam isoladamente e que a criação de redes de apoio, conversas, formação, debates e afins é um fundamento essencial para o desenvolvimento de uma mentalidade voltada para um consumo consciente, é imprescindível.

A relação entre moda e a sustentabilidade, portanto, deve ser pensada enquanto uma quebra paradigmática da própria essencialidade da criação primordial da moda? Até que ponto a sustentabilidade assume um papel significativo no mercado da moda? E, ainda, até que ponto, ser sustentável, dentro do contexto da moda, ou das modas, é economicamente viável e estruturalmente estável para que não haja um colapso no sistema produtivo? Essas são algumas das indagações que nos instigam a pensar a temática e a fortalecer redes cujo diálogo seja voltado para melhor compreender tais relações.

BIOGRAFIAS

Natália Borges

Natália Borges é designer por formação, estilista por profissão, costureira e educadora por amor. Graduada pela UFPE e Pós-graduada em Educação para a Sustentabilidade pela UNIFAL-MG/Gaia Education. Idealizadora da Urd Atelier, Consultora de Sustentabilidade no Marco Pernambucano da Moda – NTCPE, Embaixadora Docente do Fashion Revolution Brasil e Embaixadora do Slow Fashion Movement.

Cecília Pessôa

Doutora em Design pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE (2023) com tese intitulada ‘Tramas do upcycling: possibilidades de pós-uso para artefatos de moda’. Mestre em Design pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE (2016) com a dissertação intitulada ‘A Percepção dos Designers na Concepção de Vestuário em Pernambuco pelo Viés da Sustentabilidade’. Designer pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE (2005). Especialista em Gestão e Políticas Culturais pela Universidade de Girona – Espanha/ Itaú Cultural. Atua nas áreas de educação, pesquisa e consultoria no âmbito da economia criativa.

Maria Alice Rocha

Doutora em Design de Moda – PhD in Fashion Design – University for the Creative Arts / University of Kent (2007); Mestre em Engenharia de Produção pela Universidade Federal de Pernambuco (1999); Especialista em Comunicação de Moda pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1992); Estilista de Moda em Confecção Industrial pelo Senai CETIQT-RJ (1992) e Arquiteta pela Universidade Federal de Pernambuco (1989). Atualmente é professora titular do Departamento de Ciências do Consumo da Universidade Federal Rural de Pernambuco, onde atua como docente no Bacharelado em Ciências do Consumo. É membro do corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Design da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

Jaqueline de Melo

Técnica em Confecções do Vestuário (SENAI); Economista Doméstica e Mestra em Consumo, Cotidiano e Desenvolvimento Social; atualmente faz Doutorado em Design na UFPE, com a temática Moda-vestuário, Sustentabilidade, com a escuta direcionada a Donas de Brechós. É professora no Departamento de Ciências do Consumo da UFRPE.

Tatiana Leite

Professora adjunta do curso de design na Universidade Federal de Pernambuco, campus do Agreste (CAA). Doutora em Design na UFPE (2023, com graduação em Desenho Industrial- Projeto do Produto pela Universidade Federalde Pernambuco (2003). Especialista em design de moda pela Universidade Federal de Pernambuco (2006). Tem experiência na área de Design, com ênfase em Design de Moda, atuando principalmente nos seguintes temas: Design, linguagem e gênero, Desenvolvimento de Produtos de Moda, com foco em acessórios de moda e Modelagem Plana. Está vinculada ao grupo de pesquisa Viés Moda e Design (UFPE).

Isabella Morais

Pesquisadora – doutoranda e bacharela em Design (UFPE), mestra em História Social da Cultura Regional (UFRPE) – Docente Embaixadora Fashion Revolution; coordenadora de redes no NTCPE – Núcleo Gestor da Cadeia Têxtil e de Confecções em Pernambuco – Co-autora do livro “Alinhavo: a história da moda pernambucana: estilistas.