A 70ª Berlinale iniciou em meio a intempéries de vários níveis, do temor sobre o coronavírus (o júri do prêmio Teddy, por exemplo, teve ausente um de seus jurados, chinês, ficando desfalcado) a mudanças de infraestrutura causadas por revisões orçamentárias e reformas na região da Potsdamer Platz, base do festival. Na quarta antes da abertura, um atentado da extrema direita em Hanau, próxima a Frankfurt, retomou fantasmas. Semanas antes, a revelação de que Alfred Bauer, importante ex-diretor já falecido do festival, fora ligado ao nazismo, pôs o festival em controverso retrospecto. O prêmio que há 33 anos levava seu nome foi cancelado pelos novos diretores, Mariette Rissenbeek e Carlo Chatrian.
Em conversa com críticos alemães, para mim ficou nítida certa desconfiança, por parte da imprensa local, diante dos rumos que os novos diretores viriam dar ao festival. Rissenbeek, holandesa, vinha há alguns anos à frente da agência alemã German Films, assumindo a direção executiva da Berlinale. Chatrian, italiano, há seis dirigia o Festival de Locarno, convidado para a direção artística em Berlim. A lista de programação divulgada já deixava claro que certo capital simbólico de mercado por aqui, neste festival de maior magnitude que o suíço, somava-se a certo prestígio cultivado por Chatrian junto a alguns setores artísticos. Após os dez dias de Berlinale, ficou evidente que o perfil de Locarno, que vinha se firmando como festival atento, arriscado e arrojado em termos curatoriais, ganhou readequação na infraestrutura maior de Berlim – ainda que esta mesma tenha sido reduzida, de cerca de 400 para 350 filmes. Considerada por alguns uma Berlinale em tom menor, em geral o festival foi aclamado pela crítica internacional por uma retomada de relevância artística, uma amostragem de personalidade curatorial e a busca por um filão próprio que seja capaz de diferenciar Berlim de outros grandes festivais, como Cannes, Sundance e Veneza.
Isto está evidente em certo balanço, na competição oficial, que fez desta edição a mais instigante desde que acompanho as listas da Berlinale: balanço entre certos grandes realizadores de propostas particularmente inventivas, limítrofes, entre cinema de mercado e cinemas pequenos (Tsai Ming-Liang, Hong Sang-soo); apostas em nomes não tão capitalizados de pesquisa própria fresca, saborosa, por vezes surpreendente (como Kelly Reichardt e a parceria entre Caetano Gotardo e Marco Dutra); e um tom político mais direto que aparece em formas mais convencionais de comentário (Gustave Kervern e Benoît Delépine ou o Urso de Ouro Mohammad Rasoulof), traço das últimas seleções que ganhou continuidade. Em linhas gerais, uma seleção de corpo, em que os piores filmes parecem compor mais um desejo de diversidade e cor do que indicam falta de fôlego. É muito saudável que os públicos possam conhecer formas tão diferentes de se fazer cinema numa única seção, que é de todo modo prestigiosa junto às multidões e atrai milhares de pessoas aos palácios do festival.
Para reiterar seu desejo por arrojo e alocar mais filmes envisionados por seu projeto de curadoria, Chatrian criou a seção Encounters, em que 15 filmes em geral um pouco mais idiossincráticos se reuniram como numa espécie de segunda competição para cinemas cujos traços artísticos são imponentes sem que deixem de investir numa experiência forte de sala de cinema. Sendo assim, a Forum, em sua 50ª edição, ficou marcada por um ar independente ainda mais arejado, sendo que ao fim de 10 dias fica claro que aqui a busca por cinemas diferentes ganha agora um tom mais distinto de liberdade, de certo descompromisso com o espetáculo das vogas. Do contrário, há uma crença de que o fazer artístico não é dirigido por laboratórios e mercados, mas por projetos de pensamento essencialmente particulares.
É uma ideia francamente afirmada com a retomada da programação da primeira Forum (cujo nome completo é Forum Internacional do Novo Cinema), em 1971, como comemoração do cinquentenário. Era uma seleção particularmente incrível, de forte inflexão política, com filmes de Chris Marker a Nagisa Oshima, de Med Hondo a Theo Angelopoulus, em contexto de Guerra Fria cujos temas e formas ressoam nas guerras ideológicas atuais, e daí sua revisão ser tão oportuna. Sob a direção também renovada de Cristina Nord, eis a Forum fazendo um grande trabalho de retomada e reafirmação de princípios, dando à Berlinale um ar de constelação. As tantas seções do festival (Panorama, Generation, Berlinale Shorts, Forum Expanded), quase todas passando por reformulações, parecem estar dirigindo a atenção a uma sensibilidade internacional progressista que se traduz não só nas bandeiras, mas também em possíveis formas para as novas batalhas históricas, num generoso retrato dos cinemas do presente. Belo festival.