Na abertura da Panorama, Michael Stütz, novo diretor da seção, reclama pela rebelião. A Panorama é a do discurso direto, a que mais acredita na representação, e na representatividade, na chave da comunicação ampla como maior vocação do cinema. Há uma lista de problemas a ser tocada e de alguma maneira reparada pela imaginação do cinema (isso parece ser uma crença). Em especial, lutas geopolíticas e micropolíticas: trata-se, em geral, da união de bichas e bruxas (ou seja, todas as vidas que escapam ao status quo), em histórias de desobediência contadas com a transparência da tradição clássica em suas versões contemporâneas.
O filme da abertura, Las mil y una, assim se anunciou: filme de diretora argentina – Clarisa Navas – balanceando a hegemonia G na indústria da cultura LGBT, bem como indicando o projeto deste festival em destacar outro ponto de vista que não o do hemisfério norte. Se há algo de maior interesse no filme de Clarisa – e no que significa a escolha deste filme para abrir a mostra – é certa reconexão temporal entre lacração e realismo, digo: se nos últimos tempos vimos muitos cinemas dissidentes apostando no artifício, no bafo, no extemporâneo da performance como alternativa de vida (ou de morte de um mundo para surgimento de outro, como se tem dito no lugar comum das nossas melhores esquerdas), aqui há uma espécie de retorno ao pacto naturalista. Com isso, não significa que se tenha abandonado a reivindicação pelo queer como alternativa à política LGBT (que teria mais a ver com acesso a instituições que com a performatividade de visões outras). Nem que, neste sentido, deixamos a fantasia criadora do palco para retornar à melancolia mitigadora do quarto. Me parece é que talvez a invenção do corpo queer contemporâneo demonstra assimilação pelo olhar comum, já podendo ter educado os corpos do presente como o entendemos, e assim retornar à superfície onde se dá a tessitura do tempo cotidiano.
Do encontro entre fetiche do plano-sequência, retrato das vidas e busca por corpos extraordinários, talvez a assunção de que a educação queer despeja o artifício na sabedoria do tempo; e a dissidência, motor deleuziano, é reconfigurada em código baziniano. Erika Lust encontrou Lucrecia Martel. Observe com calma e verás cada detalhe dos gestos os quais nosso olhar, tendo olhado o bastante, já pôde assimilar, analisar, reexibir para um filme. Não estou falando simplesmente de filmar o cotidiano, mas talvez o contrário, um projeto de cotidianizar o filme: há uma difícil busca racional pelo propriamente pulsional no modo como o filme de Clarisa entende ser capaz de sequestrar gestos de pessoas (no que será um filme portanto em muito coreográfico). Las mil y una termina por localizar e indicar uma disputa que parece central à Panorama e à Berlinale: entre aquilo que preserva o rasgo das liberdades e aquilo que representa, e portanto domestica, vidas dissidentes (para fazer filme).