A Berlinale acabou no último domingo e destaco prêmios para o Brasil: melhor direção na sessão Encounters para Juliana Rojas por Cidade; Campo, prêmio da crítica, Fipresci para Dormir de Olhos abertos, de Nele Wohlatz, coprodução brasileira filmada no Recife; além de prêmios interessantes no cenário político global como o Urso de Ouro da diretora franco-senegalesa Mati Diop por Dahomey e o prêmio de melhor documentário para o filme palestino No other land, de Basel Adra, Hamdan Ballal, Yuval Abraham e Rachel Szor, coletivo de ativistas palestino-israelense. Nesse contexto, a premiação foi também marcada por diversos posicionamentos políticos significativos, com falas de diretores premiados em defesa dos palestinos e contra o genocídio que se opera na região, algo bastante discutido e acirrado em todo o contexto do Festival no ano de 2024.
Entrando neste terreno das representatividades, a programação trouxe alguns filmes interessantes para se destacar, pensando em outras visões, outras culturas e outras histórias. Destaco alguns aqui que me chegaram como experiências de cinema mas também como experiências de reflexão política social, que vejo como algo fundamental no cinema.
O longa Keyke mahboobe man (My favourite cake), filme iraniano que esteve na competitiva, se destaca por trazer uma história singela e simples, de amor, mas que carrega muito sobre o país, sua política, suas limitações e a realidade que o seu povo vive. Essa reflexão vai da própria temática do filme: uma mulher viúva que vive sozinha conhece um taxista e decide secretamente convidá-lo para ir à sua casa, mas vai sobretudo dos detalhes e da narrativa que se desdobra desastrosa. A partir de uma primeiro feito contra a lei, quando ela convida um homem para ir em sua casa, se inicia uma sequência de situações de contravenção baseadas na alegria que vivem por uma noite esses dois personagens. No simples, no delicado, no interno, os diretores Maryam Moghaddam & Behtash Sanaeeha refletem sobre o controle social e moral do estado, evidenciado sobretudo pelo fato de que ambos não foram permitidos sair do país para apresentar seu filme na Berlinale, que deixou, na première, duas cadeiras reservadas com seus nomes, porém vazias.
Ainda nesse sentido, explorando a construção do singelo, do sensível e do pessoal como lugar e forma para uma gigante potência de reflexão política, o filme senegalês Demba, que esteve na Encounters, dirigido por Mamadou Dia, conta a história de um servidor público de uma pequena cidade que se vê enlouquecido e adoecido pelo desaparecimento/morte de sua mulher. É também uma história de amor, dele pela mulher e entre pai e filho. Demba, o protagonista, é aposentado pelo estado e precisa lidar com todos os vazios possíveis, mas mesmo com a ajuda de seu filho que o apoia com dedicação, ele vai caminhando para sua morte. Através de um cenário, uma forma, uma estrutura e uma imagem decolonial conhecemos um pouco da cultura, da religiosidade e da realidade do Senegal, enquanto vamos com Demba vivendo esse conflito interno e emocional construído de forma bastante cuidadosa. O trabalho de montagem é algo destacável nesse filme, as idas e vindas que interrompem o tempo, que constroem o tempo do interno. Também se destaca o trabalho sonoro, que nos permite sair e entrar em diferentes pontos de vista narrativos também a partir dessa ferramenta. No filme, vamos com o Demba e vemos o Demba em diferentes momentos, acompanhamos seu sofrimento, mas também sentimos com ele. É um filme bonito e humano, uma experiência outra de cinema.
Continuando no cinema africano contemporâneo, destaco outro filme, este do Congo, que traz, a partir de uma forma mais tradicional de documentário, explorando uma linguagem participativa, assistimos de dentro a realidade de uma cidade que não possui energia elétrica, está alagada e sofre em condições de pobreza. O olhar que nos apresenta é o do congolês Nelson Makengo, com seu primeiro longa, que estrou na mostra Panorama. O filme vai caminhando entre personagens e histórias, a comunidade enquanto grupo protagoniza, por vezes pode ser confuso, mas apresenta a realidade de seu país, com nuances que vão desde o poder europeu por dar ou não energia elétrica àquele lugar, quanto por trazer à tona a força religiosa cristã, algo que me fez pensar muito no Brasil. Porém com o viés do poder da figura de Jesus e do catolicismo bastante sincrético, que é constante no filme, como saída e caminho para sobrevivência na extrema pobreza que o filme recorta, apresenta e nos insere. O filme nos faz pensar sobre a colonialdiade de forma direta, a partir de um devir e de toda uma complexidade, onde a força da cristianização na figura de Jesus (que na realidade não condiz com sua imagem europeia difundida pelo cristianismo) se mescla com toda a cultura africana que é forte e resistente.
Ambos os filmes nos provocam filosoficamente a pensar sobre poder, sobre os espaços globais de poder, sobre a colonialidade e sobre as forças que operam em nós em algum sentido de entendimento de mundo, em diversas sociedades.
Foto: O júri com a realizadora que ganhou o prêmio Teddy de melhor curta-metragem (à esquerda, com o troféu) / Divulgação
por Luís Fernando Moura
Na cerimônia de encerramento do TEDDY Awards, na última sexta-feira, o júri TEDDY, de que fiz parte ao lado de mais 4 pessoas de diferentes continentes, decidiu unanimemente redigir e ler uma manifestação para denunciar a situação na Palestina, em Gaza, e questionar a posição das instituições no Ocidente e na Alemanha. Durante as entrevistas que demos no palco ao longo da cerimônia, um dos meus colegas chegou a comentar que as políticas globais têm muito a aprender com o histórico das políticas queer e seus sentidos abrangentes de liberação.
Eu, por outro lado, lembrei na cerimônia que um aprendizado “queer” no interior da indústria de cinema pode contribuir para mover também a indústria mesma, primeiro do ponto de vista artístico, político: interrogar as noções de global e local, as expectativas de olhares estrangeiros, as convicções sobre valores de produção. E então do ponto de vista econômico, desenvolvo aqui: podemos atuar dentro de plataformas europeias como a Berlinale através de pequenos gestos, de sinalização e troca, e doravante, tomados os vínculos que estabelecemos no mercado ou no festival, de movimentos coletivos que possam constituir redes transversais e se dirigir à sustentabilidade de um ecossistema ampliado, no qual nos correspondamos mais do que dependamos.
Em texto para este mesmo CCBA, minha colega Thaís Vidal, que atuou no European Film Market este ano, lembrou que, como players do sul no global, precisamos aprender a lidar com um ambiente, afinal, localizado, a Europa, que em vários sentidos dita a escala dos caminhos globais dos mercados do cinema independente, muitas vezes determinando as condições em que se espelham as possibilidades de criação. Creio que a participação de profissionais do sul em espaços como a Berlinale é substantiva não apenas para que saibamos como trilhar no mercado internacional, mas para que progressivamente possamos torná-lo mais saudável: ou seja, para que possamos instituir, pouco a pouco, novas zonas de equilíbrio econômico e simbólico.
Poderíamos, da Berlinale em direção ao futuro, ampliar as plataformas no sul através de pactos intrarregionais e transcontinentais alternativos, paralelos e correspondentes, no sentido de que não dependamos de territórios específicos para que fazer filmes seja sustentável. Podemos ver o que ocorreu em territórios como Índia, Argentina, Coreia do Sul, com políticas específicas, e além – o que se passa em acordos como Mercosul, ou Mercosul/União Europeia, CPLP, Brics: será oportuno, como comunidade produtora de cinema, que ensinemos ao Estado e às instâncias de convivência colaborativa entre Estados e regiões o que é necessário e possível para que o cinema que desejamos seja viabilizado como atividade expressiva e econômica, tendo em vista a possibilidade de fazer filmes como manifestação artística e a garantia de ambientes de circulação plurais, de aprendizados mútuos e para outras geografias.
Produzir e financiar um filme no Brasil atualmente é algo possível e ainda mais agora com a mudança de gestão federal – que mudou radicalmente a situação que foi vivida nos últimos anos na cultura – e a retomada dos fundos nacionais para o cinema. Mas então fica a questão: por quê coproduzir com outros países?
A primeira resposta é muito simples: internacionalização do projeto, entrada internacional antes mesmo dele ser filmado, o que pode possibilitar janelas de exibição e venda para o seu filme, tanto no território latino americano, quanto no europeu, americano, asiático, africano.
Vivemos em um mundo bastante eurocêntrico e com o cinema não é diferente então é preciso entender esse mercado sem deixar a essência do seu projeto. Ainda existe uma necessidade do exótico muito forte sobre o cinema latino, africano, não europeu, e como quem dita o mercado independente é a Europa, precisamos entender como acessar esses espaços como o EFM sem deixar nossas identidades, nossos cinemas.
Um dos fundos mais importantes da Alemanha o WCF – World Cinema Fund organiza dentro da programação da Berlinale o World Cinema Fund Day, onde realiza diversas mesas de debate durante o dia discutindo não apenas o fundo mas as estratégias e a difusão para mais territórios. Esse ano, destaco uma mesa específica sobre Cinema Africano, na qual trouxeram o recorte desse continente na atuação do fundo e também uma mesa sobre coprodução minoritária.
Durante os dias de EFM, entre 15 e 22 de fevereiro, circulam no espaço produtores, agentes de vendas, distribuidores e diversos profissionais do mundo todo e é realmente difícil participar sem uma estratégia. O mais importante em um ambiente como o EFM é entender com quem se fala e o quê se fala. Buscar produtores de seu mesmo patamar de capacidade produtiva, almejando relações mais concretas e efetivas é o primeiro ponto. Também entender por que escolher determinado país e não outro, determinada empresa e não outra e eleger cada projeto seu para cada interlocutor.
A coprodução vai te trazer exigência burocráticas e legais significativas então ela precisa ser muito bem discutida e acordada entre as partes visando o melhor para o filme.
A última atividade do Berlinale Talents acabou de ser finalizada. Foram 6 dias de intensas atividades circulando entre os três prédios do HAU, um complexo de dança e teatro onde as atividades acontecem todos os dias. Nos últimos três dias, além dos talks convencionais, fui convidado por um dos tutores do Talents Press – um braço do Talents voltado para jornalistas e críticos de cinema – para compartilhar minha experiência na montagem do filme “Retratos Fantasmas”, dirigido por Kleber Mendonça Filho.
Foi incrível poder falar sobre o processo de criação desse filme com um público que não conhece muito das técnicas da montagem, mas que são especialistas em analisar filmes em seus mínimos detalhes. Durante a atividade de encerramento ocorrida na quinta pela manhã, a equipe do festival nos surpreendeu com uma convidada para uma conversa relâmpago com duração de uma hora. Era Lupita Nying’o, atriz queniana radicada nos Estados Unidos, vencedora do Oscar e estrela de filmes como “Us” (Jordan Peele) e “12 Anos de Escravidão” (Steve McQueen). A conversa envolveu tópicos que passavam pela sua carreira, o trabalho na atuação, inspirações de vida e sobre sua difícil tarefa como Presidente do Júri da Competição do Festival de Berlim.
Foram dias incríveis em Berlim que certamente guardarei na memória para o resto da vida. Não há nada mais valioso que estar em grupo, alimentando-se de cinema todos os dias e conversando sobre o que se ama e se quer fazer para sempre.
O Brasil este ano está fortemente representando na Berlinale, com dois curtas-metragens, três longas-metragens e mais de dez talentos participando no Berlinale Talents nas áreas de direção, montagem, roteiro, som. Também no ambiente de mercado, diversos profissionais participantes no European Film Market – EFM, grande parte vinculados ao Cinema do Brasil, organização que promove a conexão e internacionalização para empresas brasileiras nos âmbitos de feiras e mercados mais importantes do mundo.
Também um destaque para a série Betinho, que participou com exibição ontem, no 20 de fevereiro, do Berlinale Series Market com sessão do primeiro episódio exclusivamente para agentes de mercado, potenciais compradores internacionais. A série que conta a vida do ativista Herbert de Souza, o Betinho, interpretado pelo ator Julinho Andrade, que também é codiretor com Lipe Binder, é uma produção Globoplay e acaba por trazer a história do Brasil, por algumas décadas através da história pessoal e profissional do protagonista.
Entre os longas, na mostra Encountersfoi recebido com bastante destaque o filme Cidade; Campo, dirigido por Juliana Rojas e produzido por Sara Silveira, importante produtora brasileira responsável pela estreia de vários novos realizadores brasileiros. O filme de ficção, dividido em duas partes, fala sobre migração, identidade e as relações com a natureza a partir de experiências pessoais. É um filme íntimo que marca a estreia de Juliana em direção solo. Em sua primeira parte, o movimento do campo para a cidade, contando a história de uma mulher que perde tudo no trágico desastre de Brumadinho e precisa se refazer na cidade de São Paulo. Na segunda parte, a história de uma mulher que volta a uma fazenda onde seu pai vivia após a morte dele e junto a sua companheira precisa refazer sua vida, fugindo do caos da cidade, mas lidando com sua ancestralidade e a relação potente com o campo.
Também na Encounters teve destaque a exibição do longa Dormir de olhos abertos, da diretora alemã Nele Wohlatz, que foi filmado no Recife e é uma coprodução da Cinemascópio, importante produtora pernambucana levada por Emilie Lesclaux e Kléber Mendonça Filho. A equipe do longa foi majoritariamente brasileira e pernambucana. O longa trata da imigração chinesa no Recife e traz um belo retrato da cidade e sua cultura, desde um ponto de vista estrangeiro.
Por fim, o longa Betânia, dirigido por Marcelo Botta e que teve também uma lotada exibição na mostra Panorama, trazendo às telas belas paisagens do Maranhão e evocando a cultura do boi, costurando retratos de personagens maranhenses e suas histórias de vida conectadas ao território e sua cultura a partir de uma protagonista, Betânia, que precisa deixar sua casa depois da morte de seu marido.
Foto em destaque: Jurados do TEDDY e programadores da Berlinale 2024.
Luís Fernando Moura
Estou na Berlinale em 2024 convidado para participar do júri da 38a edição dos TEDDY Awards, viajando com apoio da Embaixada do Brasil em Berlim/Instituto Guimarães Rosa e apoio complementar do CCBA. Acho sempre importante destacar esses apoios pois eles revelam o papel ativo das instituições de Estado e de intercâmbio cultural na colaboração indireta para a promoção da participação brasileira em plataformas de impacto global, e isso é para mim um dos detalhes mais preciosos na minha vinda ao festival esse ano. Entendo que venho pela via das políticas de cultura e diplomacia, ligadas ao desenvolvimento econômico e simbólico do ponto de vida não de players da indústria, mas do desenvolvimento humano.
Foto: Luís Fernando Moura / divulgação
É nesse lugar que busco construir uma contribuição para o TEDDY, considerado o júri “queer” mais importante globalmente, ou seja, um júri que atua na vinculação entre cinema e temáticas LGBTQIAPN+. É realmente um trabalho de criação ativa de um ponto de vista transcontinental sobre os filmes, leve-se em conta, para ilustrar e mostrar, que é neste ano composto por profissionais de cinema de lugares tão distantes no mapa como Brasil (meu caso), Paquistão, Dinamarca, El Salvador/Chipre e Nova Zelândia/Austrália.
São também profissionais que atuam em distintas áreas: pesquisa, curadoria e programação (como é meu caso), mas também atuação, ativismo e realização. São colegas de júri de trajetórias e origens muito distintas se dedicando afinal a filmes também de muito variadas formas de cinema, já que este é um júri que se debruça sobre uma seleção de filmes transversal a todas as seções da Berlinale: do cinema mais propriamente considerado experimental ao cinema de ficção mais convencional, estamos vendo, lado a lado, filmes que vêm de universos por vezes radicalmente diferentes: geográficos, simbólicos, econômicos, políticos.
A questão que se mantém, dia a dia, é um território em comum que possa dirigir um ponto de vista, no campo da ideia de “queerness”, em tempos de horror do ponto de vista das políticas globais, e de tensões que mostram os limites das instituições como mediadoras da proteção à vida humana ou do freio à limpeza étnica pela ação ocidental mesma, embora muitas vezes o cinema independente busque ocupar esse lugar de expiação, e tantas vezes venha a nos trazer algum conforto que em dias como esses se torna insustentável. Estamos cercados por contradições de todos os níveis, e é necessário enfrentá-las.
Enquanto a Berlinale se construiu como plataforma global para uma discussão política sobre o cinema – feita, claro, aos modos de uma grande indústria radicada na Europa Central, com todas as implicações que daí advêm, e que revelam também sua natureza “local” –, ao TEDDY se reserva um espaço de atuação com marcas da independência que é de sua natureza. Embora seja buscado na indústria e esteja no coração da Berlinale, é também um projeto cujo sentido político (e econômico) foi construído transversalmente, ligado aos movimentos de sexodissidência e dissidência de gênero que emergiram nos centros de Berlim e que se instalaram na engrenagem da Berlinale.
Na noite de sexta (16), o júri foi apresentado numa recepção pública, podendo se introduzir à comunidade por trás da história do próprio TEDDY, a profissionais de cinema e a pessoas em Berlim que vêm atentas, de perto, entender a feição do júri ano a ano. Acredito que tenha sido um primeiro passo para a percepção da pluralidade que se põe no horizonte, dos desafios em comum e de um primeiro movimento de caminhada em direção uns aos outros com as suas diferenças, em meios às suas diferenças e, se pudermos fazer um bom trabalho, também em direção às diferenças e o que elas venham a poder produzir de significativo no âmbito institucional em suas tantas dimensões. Sabemos que em 2024 há muito para se disputar.
O Berlinale Talents chegou na metade e, apesar de estar cansado com o ritmo intenso das atividades, estou muito satisfeito com as experiências que estou trocando por aqui. Além dos talks com diretores, produtores e montadores de cinema, talvez a experiência mais engrandecedora da qual tenho participado seja a do Editors Studio. Nessa atividade, estou com mais 10 editores do mundo inteiro com atividades mediadas por três tutoras, sendo uma delas indicada ao Oscar de montagem. Tem sido a oportunidade perfeita para compartilhar questões sensíveis do trabalho da montagem de um filme e como os colegas pensam a estética e o estilo dos seus trabalhos. Nos últimos dois dias, cada um dos participantes teve a oportunidade de fazer uma apresentação de 10 minutos para os colegas. Temas como marketing, montagem de animação, meios alternativos e pouco convencionais de pensar a edição de um filme e até como evitar o burnout no trabalho foram abordados. Uma excelente oportunidade de entender que as ansiedades e alegrias da profissão não têm fronteiras linguísticas ou físicas.
Entre os dias 15 e 25 de fevereiro, a cidade de Berlim, na Alemanha, recebe um dos festivais audiovisuais mais importantes do mundo. A 74ª edição da Berlinale conta com a presença significativa de obras brasileiras e alemãs, assim como com a participação de profissionais do audiovisual pernambucano.
A cidade de Berlim, na Alemanha, recebe anualmente no mês de fevereiro o Festival Internacional de Cinema de Berlim (Berlinale), trata-se de um dos festivais audiovisuais mais relevantes do mundo. Sua 74ª edição irá acontecer entre os dias 15 e 25 de fevereiro e conta com uma programação extensa, desde exibições de filmes a atividades de formações, debates, palestras, mercados audiovisuais, etc.
A Berlinale vai muito além do “glamour” de um grande evento cinematográfico, pois é conhecida por ser um dos mais políticos dos grandes festivais de cinema, apresentando em sua programação filmes, palestras e debates que incitam reflexões sobre as problemáticas do mundo contemporâneo. Nesta edição, o festival traz temáticas como a guerra na Ucrânia, através da exibição do documentário “Turn in the Wound” (de Abel Ferrara). A obra conta sobre a vida no país desde o início da guerra e ainda há a possibilidade do presidente ucraniano Volodymyr Zelenskyj participar da exibição com uma mensagem de vídeo, de acordo com um porta-voz da Berlinale.
Recentemente, a direção do festival “desconvidou” políticos da AfD (partido político que representa a extrema-direita na Alemanha e que vem ganhando força, sobretudo nos estados do leste do país, onde haverá eleições para os governos estaduais neste ano). A decisão do festival em “desconvidar” os membros da AfD para a abertura do evento cinematográfico se dá porque o partido vem tomando posições antidemocráticas e radicais. Eles haviam sido inicialmente convidados para a Berlinale por razões institucionais, como deputados eleitos, etc.
“Hoje, portanto, desconvidamos por escrito todos os políticos da AfD anteriormente convidados e informamos-lhes que não são bem-vindos na Berlinale”, disse a dupla de empresários Mariette Rissenbeek e Carlo Chatrian, segundo um comunicado. (Fonte: ZEIT ONLINE, dpa, dar, 08/02/2024)
Neste ano, 20 filmes concorrem ao Urso de Ouro (prêmio mais importante do festival, entregue para a melhor obra do ano), entre eles, dois projetos de diretores alemães: In Liebe, Eure Hilde (Com amor, sua Hilde), dirigido por Andreas Dresen e Sterben (Morrendo), de Matthias Glasner. In Liebe, Eure Hilde (Com amor, sua Hilde) é uma homenagem à Hilde Coppi (Liv Lisa Fries), membro da resistência ao nazismo, executada em Berlim em 1943. E Sterben (Morrendo) é um drama familiar “sobre a intensidade da vida diante da impertinência da morte”, segundo a distribuidora.
Foto: Lorenna Rocha
A programação do festival também conta com a exibição de obras brasileiras: na mostra PANORAMA, será exibido o filme “Betânia”, de Marcelo Botta, na mostra FÓRUM, será exibido o filme “Quebrante”da realizadora Janaína Wagner, na mostra GERAÇÃO, estará competindo o curta “Lapso” da realizadora Carolina Cavalcanti, na mostra ENCONTROS, haverá a exibição de “Cidade; Campo” de Juliana Rojas. Ainda na mostra ENCONTROS, será exibida a co-produção e localização brasileira, “Dormir de Olhos Abertos”, da diretora alemã Nele Wohlatz, sobre uma cidade costeira do Brasil. Outra co-produção brasileira no festival é a obra “Shikun”, de Amos Gitai, com Irène Jacob (no Berlinale Special), que tem a produção brasileira da Ventre Studio.
Com o intuito de estimular a internacionalização da produção audiovisual pernambucana, de fortalecer a rede audiovisual local e de interagir com a Berlinale, o Centro Cultural Brasil Alemanha (CCBA) vem concedendo apoios desde os anos 90 para que jornalistas, cineastas, curadores e produtores pernambucanos possam estar presentes no festival. O foco inicial dos apoios estava para críticos de cinema, como Kleber Mendonça, Luciana Veras e Ernesto Barros, que cobriram a Berlinale publicando as suas matérias no Jornal do Commercio, Diário de Pernambuco e na Revista Continente. Em seguida, foram apoiados curadores e produtores de cinema em Pernambuco como Luis Fernando Moura, Thaís Vidal e Lorenna Rocha que, além de aproveitar o Festival para as suas atividades profissionais ou para a organização do Festival Janela, sempre postaram informações e impressões neste site da Conexão Berlinale.
Nesta edição do festival, o CCBA está apoiando parcialmente a produtora audiovisual Thaís Vidal, o curador Luís Fernando Moura e o cineasta Matheus Farias. Para os profissionais do audiovisual, estar na Berlinale é uma oportunidade única para criar e fortalecer a rede de contatos de trabalho internacionais, firmar possibilidades de coprodução e parcerias, fazer formações e assistir palestras com profissionais renomados, ver o que está sendo produzido mundialmente, além de mostrar o que está sendo produzido localmente em Pernambuco e no Brasil.
BERLINALE TALENTS – PROGRAMA DE DESENVOLVIMENTO DE TALENTOS DA BERLINALE
Mateus Farias (diretor, roteirista, produtor e montador audiovisual) foi um dos 202 selecionados, dentre quase 4.000 mil inscritos do mundo inteiro, para o Berlinale Talents (programa de desenvolvimento de talentos do festival). Matheus comenta sobre o programa:
“ Um evento que acontece durante o Festival de Berlim que reúne os profissionais mais proeminentes de diversas áreas do cinema da atualidade. São 6 dias de atividades que envolvem palestras, workshops, mesas redondas e muita troca de experiência com profissionais da indústria. Na semana passada, também fui convidado para fazer parte da programação para compartilhar minha experiência como montador do filme Retratos Fantasmas, de Kleber Mendonça Filho”, diz Matheus.
“ Estou bastante feliz e ansioso pela experiência de encontrar com os demais talentos e compartilhar as experiências que fui colecionando ao longo dos últimos anos. O ambiente do Talents é muito propício para a criação de parcerias e aprendizados únicos com pessoas do mundo inteiro. Espero sair de lá atravessado pelas experiências e inspirado para seguir criando e desenvolvendo novas ideias. A importância do Talents é inegável. São poucas vagas, é super concorrido e é uma oportunidade única de ouvir de perto pessoas como Martin Scorcese e Lupita Nyongo.”, complementa o cineasta Matheus Farias.
TEDDY AWARDS – PRÊMIO DE CINEMA CONCEDIDO A FILMES COM TEMÁTICA LGBTQIAPN+
Luís Fernando Moura, coordenador da plataforma FUGA, programador do FENDA — Festival Experimental de Artes Fílmicas e consultor da Janela Internacional de Cinema do Recife, está participando do festival pela 5ª vez. Com o apoio do CCBA, nos anos de 2016, 2017 e 2020, Luís foi à Berlinale como delegado do Janela Internacional de Cinema do Recife. No ano de 2021, participou do programa Berlinale Talents. E nesta edição, Luís fará parte do júri do Teddy Awards (prêmio de cinema oferecido a filmes exibidos na Berlinale com temática LGBTQIAPN+).
“A Berlinale é um lugar para criar diálogos e conexões que se revertam nas nossas próprias redes. Através de internacionalização, inspiração para formatos, é um convite que se converte em ativações locais. E isso está em meu radar, 100 por cento, é uma coisa que me entusiasma muito. Nessa ida, eu estou com o apoio do CCBA e com o apoio majoritário da embaixada alemã em Berlim, com o Instituto Guimarães Rosa, em Berlim, que cobriu os custos das minhas passagens”, diz Luís.
“ O Teddy Awards é um prêmio que tem a história mais longa entre os prêmios queer e há muita coisa em torno disso… É um espaço que se fez fundamental na afirmação de uma prática de cinema ligada às experiências de dissidência sexual e de gênero, o que muitas vezes podem nos levar a uma abordagem dissidente também do cinema enquanto linguagem: é quando tudo se torna mais interessante. Posso pensar particularmente numa pesquisa que me interessa em torno do termo “cuir”, uma corruptela do termo queer, das teorias queer, que surge na América Latina. Penso, especialmente, em discussões no Chile com artistas e pensadores como Felipe Rivas San Martín, Katia Sepúlveda ou Hija de Perra, para quem a experiência das dissidências mobiliza tudo aquilo que constitui as identidades, individuais e coletivas, para pensar outra relação com a história. E aí, eu entendo que quando a gente olha para os filmes, em particular pensando em um olhar do Sul, de onde olhamos, creio que haja algo que podemos ensinar a respeito de um pensamento sobre as imagens, um pensamento sobre cinema, a partir desses pontos de vista e de experiência”, diz Luís.
“O Teddy encarna aquilo que mais tem me interessado, que é a atuação independente em diálogo com instituições, em diálogo transversal com essas instituições, sejam elas do estado, instituições consulares, instituições de desenvolvimento econômico. É um projeto que é independente e que, ao mesmo tempo, está no coração da Berlinale, que se cria a partir de uma coletividade histórica em Berlim. Entendo que a gente vai fazendo nosso papel enquanto agentes culturais onde quer que a gente esteja, então é muito inspirador estar ali no Teddy, pensando numa atuação nas redes no Brasil, na América Latina e no Recife, em particular. Pensando nessa busca por apoios, por parcerias, em mirar outros projetos independentes, mirar outras relações com instituições, pensar como se dá a capitalização de projetos, a sustentabilidade de ações que podem mover as ideias, mover as coletividades, as comunidades, as instituições”, complementa Luís.
“Particularmente, este ano, há o meu projeto FUGA, que iniciei na pandemia e que está ganhando outras formas, tem novo site, o cetrofuga.org. É um projeto dedicado ao intercâmbio inter-regional e intercontinental de filmes. O que quer dizer que ele não é simplesmente internacional, mas busca pensar em outros circuitos de filmes, por exemplo sul – sul. Pensar região não só localmente no Brasil, mas região dentro do continente, tentar estabelecer relações entre agentes, entre criadores, entre artistas e produtores que estão em lugares que às vezes não estão cartografados, ou seja, mapeados dentro do próprio circuito. Sinto que Recife é um lugar maravilhoso para fazer isso, um lugar vocacionado para se ativar outras redes, pensando na centralidade do Recife numa descentralização do pensamento cinematográfico e artístico no Brasil. Entendo que o Recife é um lugar para ativar essas redes transversais, que tenham formas livres, muitas vezes dissidentes, como se propõe o Teddy a mapear essa busca por criações queer. Tenho isso em mente comigo a todo instante. Na Berlinale, busco também essa captação de correspondências e parcerias, pensando o projeto FUGA, pensando o Recife e o que se pode ativar através dessas ferramentas e dessa geografia”, diz Luís.
“ Em relação à importância, sendo um brasileiro no júri do Teddy, de algum modo eu acabado levando ao Teddy um olhar implicado por isso. Compreendo que é um prêmio particularmente visível para a indústria, hoje uma grande indústria audiovisual em torno do cinema LGBTQIAPN+, que impacta também os cinemas vizinhos e de modo geral também as dicussões em torno das artes e das experiências queer. Essa seleção cria fortunas e referências. Costuma ser uma seleção com algumas apostas muito interessantes, e me sinto honrado de poder participar disso através de uma atuação que se deu no Brasil e no Recife ao lado de muitos parceiros, amigos e redes. Isso passa pela minha atuação durante anos na Janela Internacional de Cinema do Recife, cuja programação coordenei entre 2015 e 2022 e da qual fui consultor artístico na última edição, por festivais como o FENDA em Belo Horizonte, do qual sou programador, e de modo geral pela construção coletiva que vimos fazendo em tantas escalas na circulação de cinema e no pensamento sobre cinema no Brasil”, complementa Luís.
EFM MARKET – EUROPEAN FILM MARKET
Thaís Vidal (roteirista, produtora e diretora recifense) vai para a Berlinale pela segunda vez e comenta suas expectativas em torno da participação no festival e no EFM Market (área de mercado na programação do festival).
“Estou na expectativa de ver muitos filmes e também estou participando do EFM Market. O objetivo é conectar com produtores, potenciais coprodutores, reativar contatos anteriores (fui à Berlinale no ano passado, fui à CANNE, fui ao Festival de San Sebastián), essa conexão vai se estendendo para possibilidades de fortalecimento dessa rede. Eu ainda não fechei nenhum negócio, mas com certeza abri bem mais o espectro de conhecimento na área de mercado internacional. E eu entendo que é isso, sendo devagar o processo. Entender o que está sendo feito, o que está sendo visto, o que está sendo procurado, quem produz o que, acho que é entender o cenário para ver como a gente pode se encaixar nesse cenário. Então, acho de extrema importância a participação em eventos grandes do cinema mundial, como a Berlinale e o ambiente de mercado”, diz Thaís Vidal.
Curador, designer de audiência e pesquisador com formação em jornalismo e trajetória na discussão e na difusão de filmes. Coordenador da plataforma fuga, programador do FENDA – Festival Experimental de Artes Fílmicas e consultor da Janela Internacional de Cinema do Recife. Realizou com parceiros a retrospectiva L.A. Rebellion (2017-2019), a mostra Brasil Distópico (2017) e a mostra CUIR — FILM Y EXPERIMENTO — LATINOAMÉRICA (2021), entre outras. Desenvolvedor da plataforma fuga, dedicada ao intercâmbio intercontinental de filmes. Foi programador do Festival Internacional de Curtas de Belo Horizonte e do forumdoc.bh – Festival do Filme Documentário e Etnográfico. Mestre pela Universidade Federal de Minas Gerais. Participante do programa Berlinale Talents, no Market Studio para designers de audiência, em 2021, e do Locarno Industry Academy – Chile em 2023.
Thaís Vidal (1990) é roteirista, produtora e diretora recifense. Mestre em Roteiro (2021) pela EICTV, Cuba e Doutoranda em Cinema pela UFPE, atualmente realizando doutorado sanduíche na Universidade de Valência e como pesquisadora convidada na Universidade Sorbonne. Sócia da Ponte Produtoras, já exibiu filmes que produziu em importantes festivais como Semana da Crítica de Cannes, Locarno Film Festival, La Havana, Festival de Brasília e Festival do Rio. O último lançamento que produziu foi o longa Rio Doce (2023), com direção de Fellipe Fernandes. Atualmente, desenvolve Sensor de Ausência, seu primeiro longa de ficção, produzido pela Vitrine Filmes. Em 2022, colaborou com o roteiro do longa-metragem Edificante, de Marcelo Lordello, filmado em 2023. Nos anos de 2022 e 2023 foi curadora do Prêmio de Roteiros FRAPA, e em 2023 está finalizando o curta que roteirizou e dirigiu, O céu sobre Havana, documentário híbrido com imagens de arquivo pessoal, além da produção de dois novos longas e da co-escrita do roteiro Pitangueira com Elen Clarice e Gabi Boeri. Também em 2023 escreveu o roteiro do curta documental Alice, produzido pela Mymama Entertainment com direção de Gabriel Novis, a ser filmado em 2024.
Matheus Farias é diretor, roteirista, produtor e montador de cinema com formação em Comunicação e Estudos de Cinematográficos. Dirigiu três curtas-metragens que foram exibidos em mais de 150 festivais internacionais. Assina a montagem de diversos filmes, incluindo “Retratos Fantasmas” de Kleber Mendonça Filho (Festival de Cannes 2023), “Propriedade Privada” de Daniel Bandeira (Festival de Berlim 2023), vencedor do prêmio de Melhor Montagem no Festival do Rio em 2022 e “Seguindo Todos os Protocolos” de Fábio Leal.
A Berlinale é historicamente um festival bastante político e os filmes exibidos apresentam, se não posicionamentos diretos, reflexões políticas importantes. Um aspecto bastante destacado nessa edição foi a posição contrária à guerra na Ucrânia. Além de todos os profissionais de produção usarem um bótom com o urso de outro, símbolo maior do Festival e da cidade de Berlim, com as cores amarela azul, houve falas e pronunciamentos em oposição à situação em algumas sessões do Festival.
Entre os dias 16 e 26 de fevereiro, centenas de sessões em cinemas espalhados por toda a cidade e maravilhosamente ocupadas por cidadãos berlinenses, além dos diversos profissionais que lotam a cidade no período do Festival. Ao público alemão, me parece, interessa-lhes fortemente o que outros países, dos mais diversos, estão produzindo no cinema e isso é fascinante.
Muitos dos filmes exibidos, sobretudo nas sessões de Curtas, Fórum e Panorama, trouxeram mulheres diretoras, o que nos destaca uma força de transformação no cenário internacional. Dos filmes brasileiros, metade foram dirigidos ou co-dirigidos por mulheres, destacando Infantaria, curta premiado pela Mostra Generation, dirigido pela alagoana Laís Santos Araújo.
Destaco também, dentro da programação, um ponto de congruência que observei na produção: filmes voltados à construção de protagonistas femininas consistentes e seus conflitos. São histórias diversas mas que refletem sentimentos, angústias, vidas e problemas do universo das mulheres, meninas em suas diversas gerações e identidades em formação. Alguns deles foram o português Cidade Habat, de Susana Nobre, o espanhol Mátria, de Álvaro Gago. O longa português Mal Viver, de João Canijo. Os curtas brasileiros Miçangas e Infantaria.
Ainda nesse universo feminista, destaco, trazendo outros pontos relevantes, os filmes 20.000 espécies de abelhas, espanhol, de Estibaliz Urresola Solaguren, que acabou por garantir a Sofía Otero o prêmio de melhor atriz trazendo uma espécie de coming of age de une menine transgênero no recorte de sua infância. E o filme And me, I’m dancing too, do iraniano Mohammad Valizadegan, que traz uma protagonista com o único desejo de poder dançar em um país onde as mulheres são impedidas de fazê-lo.
Ainda observando filmes como atos políticos posicionados, como o citado curta iraniano, no qual, ao colocar a própria atriz dançando na rua, os realizadores demarcam uma denúncia concreta e bastante arriscada contra seu estado, cito o documentário Llamadas desde Moscú, do cubano Luís Alejandro Yero, que apresenta imigrantes cubanos gays vivendo na Rússia aos primeiros sinais da guerra contra a Ucrânia e a relação opressora do espaço e da falta de identidade que enfrentam por terem saído de Cuba, pelas necessidades de fugir de seu país, em crise.
Por fim, um outro documentário que conecta a força de uma personagem feminina dentro de um contexto passível de questões quanto à figura da mulher como cuidadora, o documentário La memoria eterna, de Maite Alberdi, documentário chileno emocionante que acompanha a importante atriz chilena Paulina Urrutia e seu marido o jornalista Augusto Góngora, a quem ela cuida já idoso e com Alzheimer.
O filme constrói a partir da ausência de memória dele, a própria memória do homem que ele foi, um jornalista que serviu a seu país como comunicador e crítico à ditadura de Pinochet e que escreveu e refletiu sobre memória, conflitos e justiça. Apesar de acompanharmos a memória dele ser construída através dela num ato de completo amor e cuidado, é inegável a força da personagem da vida real que decide cuidar.
Esses são alguns destaques a partir de um pequeno recorte da programação mas que me possibilitaram inferir sobre um certo olhar, um panorama das sessões e seus aspectos.
A Berlinale é um grande festival e espero em breve voltar pra lá!
Exibido no ‘Forum Special’, A Rainha Diaba recebe novos olhares após ser escaneado em 4K.
“Acho que esta é a última festa que faço aqui”, diz Diaba, usando sua coroa e vários colares, com uma sombra verde que realça a tristeza em seu olhar. No entanto, o que ela não imaginava, nem provavelmente o diretor Antonio Carlos da Fontoura, é que 50 anos após seu lançamento, A Rainha Diaba (1973) estaria festejando pelo mundo, com uma nova cópia escaneada e a vitalidade típica de um filme anárquico, cativando público contemporâneo com sua estética kitsch, sua performatividade excessiva, cômica e brilhante, além de seu impressionante banho de sangue digno de uma história cheia de truques e traições.
De dentro de seu quarto, Diaba (Milton Gonçalves) dirige um negócio de tráfico de maconha na periferia do Rio de Janeiro. Sua primeira aparição é regida pelo suspense. Um grupo de homens está esperando para visitá-la até que possam entrar onde a Rainha está. A câmera atravessa o salão da casa de Diaba, onde podemos ver os rostos de todos os seus convidados, mas ainda não podemos vê-la. A expectativa deles é também a dos espectadores. Finalmente, um corpo preto aparece na tela, raspando sua perna com um canivete. É com essa primeira imagem que A Rainha Diaba constrói sua personagem principal, uma mistura entre violência, feminilidade e mistério.
Em A Rainha Diaba, há dois momentos intrigantes de coletividade, que são conduzidos por Milton Gonçalves: o primeiro, quando as ‘discípulas da Diaba’, durante a festa em que ela aparece triste, se colocam ao lado da Rainha para descobrir quem estaria “atrapalhando seu coreto”; Já a segunda é durante a cena de tortura de Isa (Odete Lara), uma personagem que é arrastada por um grupo de pessoas não-binárias e travestis para um salão de beleza e acaba traindo seu amante, Bereco (Stephan Necessian), que está mexendo na maconha da Diaba depois dela ter sido enganada por Robertinho (Edgar Rugel Aranha), um ex-sócio de confiança da Rainha, que quer tomar o lugar da Diaba no tráfico.
O corpo de Milton Gonçalves é uma presença insubmissa e inescapável, que usa a violência para romper os imaginários convencionais de criminalidade associados ao corpo negro. Além disso, a performatividade do corpo da personagem Diaba provoca, ainda, uma quebra na idéia de criminalidade exclusivamente dominada pelos homens. O corpo negro ganha ambivalência em sua dissidência de gênero, seu excesso performativo e a extensão de seu corpo, que se dá através da coletividade que envolve essa figura.
Mesmo que nem sempre seja vista por nós, objetos de cena, roupas e cores brilhantes se espalham pelo filme, fazendo de Diaba uma presença onipresente. O roxo, laranja ou vermelho dos trajes de seus parceiros de crime irradiam tanta vitalidade quanto a energia emanada pela Rainha. Todos os envolvidos nesta história a mencionam, seja por adoração ou com a intenção de ocupar seu lugar no trono. Esta figura onipresente nos convida a senti-la sem necessariamente vê-la.
O CCBA – Centro Cultural Brasil – Alemanha é uma instituição cultural no Recife/Brasil, reconhecido e apoiado pelo Governo Alemão, o Instituto Goethe e o Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico – DAAD. Na sua programação cultural o CCBA valoriza o diálogo com a sociedade civil e a cooperação com parceiros locais em projetos que dizem respeito a debates e desafios contemporâneos. Além disso oferecemos cursos de Alemão e Português (para estrangeiros).