Para quem já conhece o trabalho de Anna Muylaert, é impossível assistir “Mãe só há uma” sem retornar a “Que horas ela volta?”. Neles a diretora paulista adota abordagens diferentes para criticar o mesmo universo: o da classe média tradicional brasileira.
Agora é possível sentir a urgência de ampliar a denúncia da família conservadora como dispositivo idiotizante e aprisionador, colocada anteriormente com uma precisão formal dispensada por Anna em sua nova obra, que traduz a irreverência e liberdade sexual da juventude em movimentos de câmera instáveis, imprevisíveis, conferindo ao filme leveza e vivacidade que jamais seriam alcançados pelos planos fixos, penumbras e tons pasteis da produção anterior.
A mudança estética remete a uma interessante inversão de pontos de vista. Se Jéssica é o elemento estranho a invadir e desestabilizar o campo sóbrio e minado da burguesia paulistana, em “Mãe só há uma”, uma família parecida invade o mundo liberto de Pierre (Naomi Nero), jovem transgênero e suburbano, que vive a plenitude dos 17 anos na base do sexo, drogas e rock’n’roll.
Um dia ele descobre que seu nome não é Pierre: recém-nascido, foi roubado na maternidade. Reintegrado aos pais biológicos (Matheus Nachtergaele e Dani Nefusi), o garoto se recusa a entrar na gaiola oferecida pelos pais. Questiona o jogo da família tradicional e desafia visceralmente limites de convivência, permitindo ao filme bons momentos, tanto de humor quanto de tensão dramática.
Nas cinco sessões promovidas pela Berlinale, “Mãe só há uma” recebe votos do público, que em 2015 elegeu “Que horas ela volta?” como o melhor da Mostra Panorama. Além disso, ele concorre ao Teddy Awards, dedicado a filmes de temática gay, independente da mostra. Não será surpresa se ganhar.
* Visto no Colloseum Kino, Prenzlauerberg, em 17/02/2016