É com esta fala que iniciamos nossas reflexões acerca das práticas agroecológicas que permeiam as agricultoras no centro urbano da cidade do Recife. A agricultura não tem glamour e prestígio, mas fornece a famílias, principalmente, àquelas de ocupações irregulares, uma fonte básica de alimento. As muitas necessidades que cercam as periferias se dobram a mais bruta de todas: a fome. 

A carência de atenção em diversos aspectos faz com que as comunidades olhem para dentro de si e busquem por meios que intentem sanar tais carências. 

Nossa discussão sobre Agricultura urbana perpassa histórias, caminhos e dentre as vielas que adentramos estão a produção de plantas medicinais, e construção de farmácias vivas, e práticas de agrícolas cabíveis no contexto de escassez hídrica e solos pouco nutridos. 

Enquanto um abrigo de discussão de troca de vivências, o CCBA apresenta-se como uma grande árvore centrada em que todos reúnem-se. Em fins de ano, representantes de associações que integram um núcleo de grupos de produção de plantas medicinais, principalmente, com a valorização daquelas típicas da região nordeste como a tintura de azeitona (glicose) e espinho de cigano (asma, expectorante) estiveram presentes no CCBA. 

O CEFOMP – Centro de Educação e Formação de Medicina Popular é um projeto de filantrópico sustentado pelas atividades de voluntárias. O projeto gira em torno do cultivo de plantas medicinais e de oficinas de cultivo de horta com alimentos orgânicos, os quais são doados para a comunidade e voluntárias. Ele teve início com a pastoral da saúde com o apoio da arquidiocese e hoje, se localiza em um prédio cedido pela igreja na área urbana do município de Paulista. A participação em feiras orgânicas faz com que haja um capital de giro para custear a manutenção do projeto. 

Os grupos iniciam de modo muito próximo, principalmente com uma necessidade incomum: das comunidades terem medicamentos acessíveis. E a igreja, enquanto uma instituição social, assume um papel de incentivador, direcionando ações de voluntariado. 

A exemplo de um projeto que foi integrado à política pública municipal, tem-se o município de Brejo de Madre de Deus, cuja associação de produção medicinal foi formalizada como uma “farmácia viva”, por meio de políticas de incentivo. Nesse ponto, sua característica é que os medicamentos produzidos a partir dela não podem ser comercializados, ou seja, é uma produção medicinal totalmente direcionada a doações.  

O CESAM – Centro de Saúde Alternativa da Muribeca – é uma referência há mais de 28 anos na produção de remédios a partir de plantas medicinais. Sua estruturação inicial tomou forma de modo muito semelhante às demais associações, mas foi se amplificando e criando ramificações com diversas entidades do conhecimento. A sua estrutura atualmente é liderada por um grupo de mulheres que atuam de modo voluntário horizontalmente e são assistidas, principalmente, por projetos vinculados à Universidade Federal Rural de Pernambuco que as acompanham com o apoio de farmacêuticos, engenheiros agrônomos, técnicos agrícolas e afins. 

O CESAM tornou-se uma associação para fins de formalização. Todo o trabalho empregado, segundo suas voluntárias, já seguia a lógica da economia solidária, muito embora elas não tivessem a ideia do conceito, mas a prática, já estava viva em suas ações. 

Apesar do romantismo da coisa, uma questão levantada foi a necessidade que as voluntárias possuem de ter o seu sustento e que, por essa razão, muitas das vezes, a ajuda se torna escassa. Para elas, é necessário que haja uma certa compensação financeira para os trabalhadores que executam o trabalho. A forma com que elas manejam isso é a seguinte: Após a venda dos produtos, em feiras, por exemplo, há um desconto das despesas totais do processo e, apenas após isso, há uma divisão entre elas do valor restante. 

Apesar de elas sentirem orgulho do que realizam, um comentário destoou dentre os demais. Ao fato delas possuírem um sentimento de não aceitação (pela sociedade) desse tipo de trabalho e de sua abordagem. 

Muito embora haja uma pressão da própria sociedade por sistemas mais competitivos, a escolha por uma economia solidária e com pensamento voltado a suprir carências básicas de outros, torna o trabalho dessas mulheres um elemento de sustentação nessas comunidades. A exemplo do que ocorreu nos eventos extremos de precipitação em 2022, a casa onde abriga a associação e a horta foram totalmente destruídas pela chuva. Neste episódio, apesar do caos que estava instaurado em outras comunidades, a população se organizou em prol da retomada do CESAM com doações para reestruturação e de mudas para a horta. 

A relação das universidades com as práticas do saber popular viabiliza a ascensão destas em um contexto de valorização na esfera pública. A troca de conhecimentos se fundamenta em uma relação dialética cuja tecnicidade da academia se depara com o empírico embasado por valores que denotam desde às questões sociais, ao misticismo das práticas ligadas a sua ancestralidade. 

Além disso, outro cenário envolve as ocupações irregulares urbanas, as quais são uma das múltiplas facetas da ausência de provisão de um dos direitos básicos do cidadão, a moradia. Essa configuração gera uma cadeia de problemas sociais que atingem toda a classe etária. 

Um exemplo desta situação que condiz a outras vivenciadas nas áreas urbanas é a ocupação 15 de novembro, localizada no município de Paulista, a qual fica alocada nas imediações do cemitério público do município e cuja horta foi nomeada como “horta sementeira esperança”. A terra ocupada se localiza no entorno de um esgoto desativado da COMPESA (Companhia Pernambucana de Saneamento). 

A comunidade, conforme trouxe à tona algumas de suas moradoras na roda de debate, possui carência em vários aspectos, desde o financeiro, cultural, de conhecimento técnico, até o mais perturbador de todos, a fome. A fome induz que a comunidade se organize em condições indesejáveis para produzir alimentos (por mais escassa que sejam) para consumo próprio. 

Com o estreitamento dos laços entre a universidade e organizações que assistem situações análogas, a comunidade 15 de novembro apresenta hoje melhores condições para o cultivo de plantas condimentares, medicinais e ornamentais. Em troca de depoimentos, elas comentaram que em seu território é trabalhado a agroecologia e praticam a economia solidária. O foco hoje em dia é comer melhor. 

A questão da mulher é expressamente levantada, ademais, o cuidado em si, é repassado a elas como uma responsabilidade quase maternal que se embrenha nas estruturas sociais e persistem sutilmente em todas as relações, ou em sua maioria, de manutenção comunitária. 

As favelas, as mulheres de favela, as filhas de favela são um exemplo de como as mulheres exercem um poder sobre suas múltiplas funções dentro dessa tal estrutura e de como suas responsabilidades são escancaradas diariamente frente a necessidade de sobrevivência, sua e dos seus. 

A presença da comunidade do Jequiá no encontro explorou outras questões que estão associadas às práticas organizadas dentro das comunidades que possuem ocupações irregulares e tem histórico de “desapropriações”. A este último ponto, apesar das calorosas discussões, não nos caberá destrinchar, pois ao que nos resta aqui é ressaltar o papel destas mulheres que estão na linha de frente de lutas e confrontações enquanto protagonistas de suas próprias histórias. 

A presença das mulheres nas hortas implica veementemente em duas situações: a primeira desponta para a necessidade de se ter algo cultivado que possa servir de alimento e a segunda é que esta ação só é viabilizada entre aquelas que não possuem empregos, ou subempregos, cuja carga horária limitante as inviabilize de dedicar-se a horta. Ou seja, “muitas dessas mulheres estão em casas de família fazendo faxina, trabalhando por um prato de comida mesmo”, comenta uma das moradoras da comunidade. 

O problema da água foi relatado por todas as comunidades presentes. A deficiência hídrica inviabiliza uma produção efetiva e, para isso, muitas vezes é necessário realocar as hortas e buscar assistência em ONGS, associações ou voluntários. O abastecimento da água é uma responsabilidade da gestão pública, principalmente, pois em muitos dos casos há um registro e as ligações são taxadas. A isso, outro problema que se traduz a partir das diferenças postas no direcionamento de atenção/prioridade para áreas de menor valorização no centro urbano. 

Ademais as políticas públicas direcionadas às mulheres que atuam na agricultura urbana são inexistentes em vista das necessidades destas e da situação as quais vivem e experienciam dentro da cidade vistas como periféricas, faveladas e sem valor. É a este fato que os comentários se confluem. A terra nos centros urbanos possui mais valor que as vidas que ali lhe são postas. Este sentimento é compartilhado por todas elas.

O depoimento de uma das moradoras da comunidade do Jequiá levantou outras pautas associadas ao papel da agricultura nas ocupações irregulares. “Eu consegui sair das drogas por conta da horta. Nós nos ajudávamos. As mulheres se ajudam, a comunidade se envolve, mas as políticas públicas não chegam nessas pessoas que mais precisam”.  

Muito embora as discussões sejam infindas, a noite de sábado no CCBA foi encerrada com muita conversa, troca de contatos, inclusive dentre representantes governamentais presentes, e, principalmente, um sentimento de que uma rede de apoio para as mulheres da agricultura urbana está tomando forma.